sábado, 23 de fevereiro de 2013

Uma tinta descascada


Abriu a porta do quarto lentamente. Estava exausto, o corpo pesado. Seus olhos estavam estranhos como quem olhava para um ponto fixo no horizonte. Sentou-se em sua cama. Observou o seu quarto. Um pôster mofado do Queen, um quadro com uma paisagem marítima, paredes rachadas, correntes penduradas e várias marcas de tinta descascada. Era estranho.

Reparou minuciosamente nos objetos à sua volta. Vários esquecidos. Empoeirados. Viu seu quarto num certo estado de decadência. E pensar que anos atrás ele já foi mais organizado...

E então, seus olhos estranhos se viraram para a janela, ainda aberta, ainda que tarde da noite. Sua rua tinha mudado. A árvore perto do portão do seu Mario foi removida. Quando a cortaram? Percebeu também que algumas casas estavam diferentes. Olhando bem, tinha uma que até não existia mais. Quando a demoliram? Justo a mais bonita e antiga da rua?

Reparou também na ausência de alguns vizinhos. O Luis, que vivia jogando bola até duas da manhã; a Marina, que vira e mexe batia palmas nos portões baixos com seus produtos de beleza e bijouterias; o Cadu, que queria ser policial quando crescesse... Onde estavam todos eles? Será que ainda moravam por ali?

Suspirou enquanto fechava a janela. Era hora de tomar um bom banho e ir dormir. Ao virar-se para a porta de seu quarto, o rapaz se deparou com seu espelho. Passou a se observar. Há tempos que ele usava a mesma blusa verde e desbotada. Estava mais magro, abatido. Despiu o peitoral. Assustou-se ao ver as costelas mais saltadas. Jogou-se embaixo do chuveiro. Ao voltar, abriu seu guarda roupa. Junto às suas camisetas havia dois livros, um de atualidades e um guia de profissões. Ambos já estavam ali há quase quatro anos. Nem se lembrava mais deles. Isso porque durante um tempo, quando queria prestar vestibular, estes foram as suas bíblias. No fim, não deu em nada. Lembrou-se que seus antigos colegas de escola já estavam cursando superior, enquanto ele ainda apenas trabalhava como caixa numa rede de fast-foods.

Vestiu-se, arrumou sua cama, apagou a luz. Deitou-se, ainda bastante pensativo. Era engraçado porque até naquele dia de manhã ele se sentia a mesma pessoa de sempre. Bastou o rapaz encontrar uma antiga namorada, saber que ela casou e formou-se em Administração, e um grande amigo repetente da escola e que agora cursava Economia na USP, que viu os olhos do seu tempo se abrirem. Sua vida tinha se tornado uma tinta descascada, assim como aquelas paredes do seu quarto. E concluiu: era hora de pintar um novo quadro.

As coisas realmente mudam, e mudam tanto, que até quem não sai do lugar acaba sentindo isso através da sua própria deterioração.

Danilo Moreira

São Paulo, julho de 2008 
© 2011

 * Publicado originalmente no blog Em Linhas... em 16/07/2008. Versão revisada.

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FOTO: http://br.freepik.com/fotos-gratis/pintura-descascada-ferrugem_542496.htm

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Miniconto - O vento proibido



Ele lhe provocou desejos proibidos.

Quando foi perceber, a pessoa já estava hipnotizada.

Abriu os olhos num raio de segundo, se viu como apenas um corpo ao lado do dele. Suspiros. Gemidos. Mordidas. Membros dançando o ritmo do pecado. Líquidos. Sabores. Bocas. Braços. Pernas. Prensas. Posições.

Respirou fundo, abriu os olhos. Assustou-se. Seu coração disparou. A sua imaginação provara daquele corpo contra a sua própria vontade. E a sua consciência, mais uma vez, provou o sabor azedo do constrangimento.

Ele foi embora e junto, mais uma chance de ser feliz.

A vida segundo o protocolo social das pessoas civilizadas é quem dita as regras dessa história.

Danilo Moreira

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FOTO: http://eutekerobem.blogspot.com.br/2006/09/mordida-na-ma.html

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Nossos partos



Cada parto tem a sua dor.
Quem me dera se esta bela criatura,
Pudesse nascer sem ruptura,
E nem uma só lagrima derramada.


Danilo Moreira

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FOTO: http://encolar.blogspot.com.br/p/preparacao-p-nascimento.html 

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