quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Felicidade entre os ferros do ônibus




Setembro de 2012. Final de uma tarde de domingo. Saída do SESC Interlagos, na zona sul de São Paulo. Show da banda Ultraje a Rigor. Uma muvuca seguia rumo ao ponto de ônibus. Eu e mais três amigos esperávamos por qualquer um que nos levasse a um “ponto mais acessível” a outras linhas. Ao encostar uma lotação, um bolo de gente se formou ao redor, e as escadas ficaram inacessíveis. “Vamos nesse!”, falei ao meu amigo. No fim, ficamos. Tivemos que esperar por outro.

Foi então que veio um ônibus, piso baixo, com enormes degraus. Subimos nós quatro. O casal de amigos se sentou em bancos de idosos. Eu e meu outro amigo ficamos em pé, ao lado deles. 

Ruas depois, uma mulher loira, baixinha, com três crianças, subiu alvoroçada. Falavam alto. Riam muito. Faziam festa. A mulher não era mal vestida. Muito menos as suas crianças. Encostaram-se justamente no meio do corredor. Pelo fato do coletivo estar vazio, era possível escolher o local em que poderiam ficar. E escolheram ficar ali.

E como se não bastasse, decidiram promover mais animação àquela viagem. A criança mais velha – devia ter pouco mais de 10 anos – formou junto com a mãe um sanduíche, junto com as duas crianças menores, que ficaram no meio. A mulher se segurou entre dois ferros, e pôs-se a balançar com eles, acompanhando os movimentos do ônibus. Balanços logo foram acompanhados de gritos exaltados. Tinha transformado o coletivo em um playground. 

Um idoso, de chapéu, entrou no local. A minha amiga, do casal, ofereceu o lugar para sentar. Creio que ele pensou em ir, mas o playground deve o ter desanimado de tentar subir. 

E a brincadeira continuava, com a tal mulher se jogando com os filhos entre os ferros, como se estivesse num barco viking do extinto Playcenter. Barco apertado, diga-se de passagem. Mas isso ela resolveu tirar de letra. Quem estivesse perto que aguentasse as consequências. Jogava seu corpo contra quem estivesse atrás. E ria. Gritava. Divertia-se junto com as crianças. O barulho começou a incomodar as pessoas. Cabeças se viravam para trás, mas, numa apatia de quem estava acostumado com situações incômodas dentro dos ônibus, evitaram qualquer manifestação. Meu amigo, que tinha ficado em pé, foi acertado várias vezes nas costas, mas para não arrumar confusão, preferiu apenas se distanciar da mulher.

“Veja, o pão e circo... É disso que o povo gosta.”  – comentou comigo, irônico. 

E a alegria continuava. Não sei se aquela mulher e seus filhos conheceram um parque de diversões alguma vez na vida, mas a sensação que transmitiam era a que realmente estavam em um, mesmo que aqueles ferros não tenham sido fabricados para ter essa sensação. E quem estava perto, para ela, que se danasse. Infelizmente, o tal idoso, de chapéu, era o premiado naquele minuto. Foi jogado para o lado com violência. Nisso, os meus dois amigos, o casal, que estava sentados, ficaram indignados, e se manifestaram contra a mulher.

“Você é louca! Olha o senhor idoso aí!”

Estragaram a alegria da mulher. Chatos. Diante disso, ela não fez outra coisa a não ser ficar indignada. E a alegria com as crianças mudou, mais rápido que o tempo em São Paulo, para um surto de agressividade e descontrole.

“Calem essa boca! Vocês estão incomodados com a felicidade alheia! Brasileiro não pode ser feliz que todo mundo se incomoda!”

A partir daí, o que se seguiu foi uma sucessão de palavras de baixo calão, trocadas entre a mulher, os meus amigos, e também o senhor idoso, que foi inclusive recebeu histéricas ameaças de agressão por parte dela.

E enlouquecida, até o ponto que descemos, ela provocou. Meus amigos e o idoso se tornaram vilões. Uma outra mulher também a defendeu, dizendo que os incomodados que fossem pegar um taxi. Injustiça. Que absurdo destruir a felicidade alheia, mesmo que ela se resumisse em se pendurar em ferros de ônibus. Vendo que a mesma queria exibir a seu conceito de felicidade da mesma forma que alguém pendura uma melancia no pescoço, meus amigos decidiram não dar mais atenção. Mas ela queria atenção. E foi os provocando até onde descemos.

“Eu quero ver quem vai impedir a minha felicidade. Vejam meus, filhos, não abaixem a cabeça pra ninguém! Sejam felizes! Não deixem ninguém estragar a felicidade de vocês!” – disse, sentindo-se imponente.

“Sim, mamãe, a gente não vai abaixar a cabeça pra ninguém!” – respondeu uma das crianças, como se falassem a uma super heroína perante os inimigos cruéis.

E foi assim que descemos. A mulher ainda se vangloriando da tal felicidade, e meus amigos, os vilões cruéis e sem humanidade, ainda sentindo pena daquela espécie de pavão bizarro de virtudes.

É assim que vamos caminhando, com pessoas como ela sendo felizes, mas tão felizes, que continuarão se pendurando em ferros de ônibus, empurrando e ameaçando idosos de agressão, e ensinando as suas crianças a acreditarem que estão sempre certas. 

Um futuro emocionante nos aguarda. Pelo menos nos transportes coletivos, que já são um reduto de felicidade cotidiana.

Danilo Moreira


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FOTO: http://ascartasqueeunaoenvio.blogspot.com.br/2009/09/gente-folgada.html 


domingo, 16 de dezembro de 2012

Quatro anos



Vila Mariana, zona sul de São Paulo, 11 da manhã.

Ouço aquelas risadas. Muitas. Por um momento, esqueço que estou na sala de aula de uma faculdade. Parece que estou em casa. O professor também. Mas, não é indisciplina. Nem desordem. É intimidade construída ao longo de quatro anos. São amigos, que entre um slide o outro, riem, filosofam, questionam, debatem como se falassem com um parente. E tudo acaba numa grande gargalhada. Quatro anos. Era de se esperar que acabasse assim, nessa grande brincadeira tão séria. 

Uns fazem planos para o futuro. Vieram de longe, mesmo que o longe ainda fique na mesma zona sul de São Paulo, ou no extremo da zona leste. Mudaram o visual. Amadureceram. Traçam planos. Ou então, o futuro a Deus pertence. Não importa. O que precisam mesmo é terminar tudo aquilo, apresentar o TCC, resolver todas as pendências que ficaram.

Saio da faculdade. O silêncio dos corredores tão característico do Matutino não é mais o mesmo. Entraram novas turmas. Calouros barulhentos, deslumbrados com todo aquele universo da graduação. E eu caminhando devagar, com cansaço nas costas, prazos na cabeça, e um pequeno sentimento de saudade de tudo aquilo, sensação que aos poucos começa a me abraçar. 

Subo na biblioteca, não tão vazia como antes. Grupos de “bixos” e de outros semestres se aglomeram. Pegam livros, jornais. Falam de matérias que eu nem me lembro mais. Alguns professores de que falam mal conheço. Reclamam de trabalhos pesados com tensão e receio na voz. Eu rio por dentro. “Eles não sabem o que os esperam ainda...” – penso. Sento-me na mesa onde se encontra meu grupo de TCC . Reunião. Todos sérios. Sisudos. E pensar que há quatro anos, mal falava com alguns deles. Outros eu já tinha visto em todos os estados possíveis: felizes, bravos, deprimidos, eufóricos, bêbados... E agora, todos eles ali na minha frente, com postura de profissionais, dialogando entre si com a tensão dos prazos traduzida nas palavras secas e objetivas e nas dores na cabeça e no estômago.

Problemas resolvidos, hora de almoçar. Entro mais uma vez naquele restaurante com nome de personagem do Sítio do Pica-Pau Amarelo, num casarão antigo, de mesas apertadas e receptividade enorme, a ponto de já chamar o dono pelo nome. Comida caseira. Amigos me acompanham. Discutimos assuntos que vão de política ao tamanho da linguiça no prato. Hora de ir para o estágio. Me despeço de todos. “Sexta tem pastel na feira do Ana Rosa, né?”. “Sim, tem!”. À noite, tem barzinho. Amigos de vários semestres reunidos em uma mesa. Risos. Danças. Bebidas. Papos. Beijos. Todos perguntam entre si: “E aí, tem planos para o ano que vem?”. Ano que vem tudo muda. Muda? Ou recomeça? Ou volta a ser o que era antes da faculdade?

Tintas na mão. Novas caras e corpos sendo pintados. “Vem, vem, vem bixo, vem!”. Trote com ar de despedida da turma mais veterana. “Aproveitem, bixarada, quatro anos passam rápido!” E passam. Não tenho mais paciência para ouvir slides e anotar explicações do professor. Não consigo mais acordar no horário. Preciso dormir, mas não posso. Aquelas paredes que antes me fascinavam pelo ar maduro da universidade, agora me parecem comuns como qualquer outra. Mas, não paro de olhá-las, agora com uma sensação estranha. Quando poderei olhá-las novamente? O mesmo faço com as pessoas ao meu redor ali, como aquela faxineira que sempre cruzo no elevador, ou com os antigos casarões vizinhos sendo engolidos pela especulação imobiliária. O passado nostálgico, dividindo espaço com o presente tenso do TCC, e se espremendo com o temor e os planos do futuro.

Curioso é ver como coisas tão simples e cotidianas, de repente, irão se tornar apenas mais um pedaço da série de lembranças que ocupam o nosso armário de recordações. Um ciclo de quatro anos se fecha. Agora, incógnitas surgem, poucas certezas aliviam a sensação de pisar no escuro. E a saudade... bem, vai tomando forma e criando corpo.

Sinal de que valeu a pena cada segundo. E valeu mesmo. Ganhei uma valiosa bagagem e que será muito bem guardada, com carinho. Obrigado a todos que participaram dessa história. E continuem participando até o dia em que a vida, o destino e a rotina deixarem.

Que venha o futuro.


Danilo Moreira

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 FOTO: acervo pessoal
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